BRIGA ENTRE COALAS E CANGURUS – Estória
Num passado muito remoto, quando a Austrália ainda não era conhecida por esse nome, nem ainda era habitada pelos aborígenes australianos, já lá viviam os coalas e os cangurus em territórios diferentes, separados por um rio muito largo e muito comprido. Tinha de ser assim, porque os coalas e os cangurus tinham tido uma briga e não falavam uns com os outros, havia tanto tempo, que já ninguém sabia ao certo por que razão tinham brigado.
Nené era um coala fêmea de pelo cinzento-claro, orelhas muito grandes e um saliente nariz escuro. Vivia numa floresta de árvores muito altas, com troncos grossos, que ficava no território dos coalas, e a sua árvore preferida era um eucalipto que crescera junto ao rio. Pendurada no galho mais alto dessa árvore, Nené podia lançar um olhar furtivo para o território dos cangurus. Era sempre interessante observar, à distância, os muitos eucaliptos carregados de folhas viçosas e apetitosas, que ninguém tinha interesse em comer, daquele lado. Chegou até a pensar em mudar de território. O problema era que isso ia contra as regras da sociedade dos coalas, que não queriam ter qualquer tipo de contacto com os cangurus…
Nené era muito dorminhoca e comilona. Como todos os coalas, aliás. Por essa razão, o território habitado pelos coalas chamava-se País dos Dorminhocos e Comilões.
No País dos Dorminhocos e Comilões, os coalas passavam todo o dia a dormir ou a comer, pendurados numa árvore. Não faziam mais nada. Quando não dormiam, mastigavam, mastigavam e mastigavam. Davam milhares de trinquinhas por dia, sete dias por semana, quatro semanas por mês, doze meses por ano. É incompreensível que ainda tenham encontrado tempo para brigarem com os cangurus…
Nené, que já estava farta de sonhar com as folhas dos eucaliptos do território dos cangurus sem lhes poder chegar, resolveu tirar tudo a limpo e foi falar com o coala mais velho do País dos Dorminhocos e Comilões.
– Bem, ao certo, ao certo…, eu também não sei como foi – esclareceu o velho coala. – Mas, pelo que ouvi a minha bisavó contar, quando eu ainda era muito jovem, deve ter começado tudo com um mal-entendido…
– Um mal-entendido? O que queres dizer com isso? – perguntou Nené, curiosa.
– Tudo começou durante a grande seca – contou o coala. – As plantas e os frutos começaram a escassear em todo o continente, e espalhou-se o boato de que os coalas os comiam às escondidas. Os cangurus acreditaram. No entanto, como é do conhecimento de todos, os coalas só comem folhas de eucalipto…
– Pois claro! – exclamou Nené, indignada. – Até parece impossível!… Como é que os cangurus se lembraram de um disparate desses?!
– Se a ideia partiu dos cangurus, não se sabe, mas o certo é que acreditaram nela, e vieram ter com os coalas, para lhes pedirem satisfações.
– E os coalas, o que disseram?
– Ficaram ofendidos, como é natural, com a desconfiança dos cangurus. Palavra puxa palavra, e, depois de uma longa discussão, estavam de relações cortadas. Desde aí, os coalas e os cangurus vivem em territórios diferentes e já não se falam.
– É pena… – desabafou Nené.
– Não sei porquê! Na minha opinião, está tudo melhor assim. Os cangurus são muito arrogantes, por serem grandes saltadores, e nós, os coalas, gostamos de descansar nos ramos das árvores e precisamos de dormir muitas horas para poupar energia. Como vês, ainda que sejamos aparentados, não temos nada em comum…
Nené não fez qualquer comentário, por respeito ao coala mais velho, mas partiu insatisfeita. “Afinal, foi só tudo um mal-entendido…”, pensava ela, inconformada com a situação.
Dirigindo-se de novo para a sua árvore preferida, encontrou pelo caminho um ornitorrinco, que tinha deixado o rio e passeava por ali, à procura de algum inseto que lhe servisse de alimento. Nené cumprimentou-o, amavelmente:
– Muito boa noite!
– Boa noite – respondeu o ornitorrinco, um tanto desconfiado.
– Eu sei que os coalas e os ornitorrincos não costumam ser amigos – acrescentou Nené. – Mas eu ando a ponderar um problema e pensei que talvez pudesses ajudar-me…
– E de que se trata? – perguntou prontamente o ornitorrinco.
– Ah! És curioso… Ainda bem! – exclamou Nené, toda contente. – A maior parte dos coalas só se interessa por coisas monótonas, sabias?
– Acredito. Mas… qual é o problema?
– Gostava de esclarecer um mal-entendido e não sei como hei de fazê-lo…
Nené contou então ao ornitorrinco a história da briga entre coalas e cangurus.
– Estranho! Eu sempre ouvi contar a história de outra forma… – comentou o ornitorrinco.
– De outra forma?! – perguntou Nené, admirada. – Então tu também conheces a história?
– Todos os ornitorrincos conhecem! Nós passamos toda a nossa vida a atravessar o rio. Ora nadamos para o território dos coalas, ora para o dos cangurus.
– E o que conta a versão da história que conheces? – perguntou Nené, impaciente.
– Sempre ouvi contar que foram os coalas que insultaram os cangurus, e não o contrário.
– Essa agora!
– É como te digo! – assegurou o ornitorrinco. – Foram os coalas que acusaram os cangurus de terem feito desaparecer os frutos e as plantas. Chamaram-lhes aldrabões, surripiadores e outros nomes feios que eu não posso dizer…
– Agora é que eu fico sem palavras…
– E não é caso para menos. No entanto, passado tanto tempo, não se pode saber ao certo quem tem razão: se os coalas ou os cangurus.
– Disso eu não tenho certeza… – disse Nené, pensativa. – O que me parece é que ninguém está interessado em descobrir a verdade. Talvez seja mais cómodo assim…
– Pode ser… Quem sabe?! Talvez os cangurus e os coalas só queiram mesmo é viver em territórios separados e, por isso, não tenham qualquer interesse em fazer as pazes – opina o ornitorrinco.
Mas Nené, que não queria desistir da ideia de pôr fim à briga entre coalas e cangurus, propôs-lhe logo de seguida:
– E se nós procurássemos no território dos cangurus alguém que nos ajudasse a resolver o conflito?
– Nós?! Como imaginas uma coisa dessas?! Eu vivo a maior parte do tempo no rio, mas os coalas, como sabes, não são grandes amigos da água…
– É um facto. Mas, para grandes males, grandes remédios: se me ajudares a construir uma jangada, eu posso atravessar o rio sem me molhar.
O ornitorrinco concordou. Recolheram alguns pequenos troncos de madeira que se encontravam espalhados pelo chão da floresta, amarraram-nos bem em forma de barco, e a jangada estava pronta.
Nené subiu ao seu eucalipto preferido e colheu todas as folhas que pôde. Colocou-as na parte da frente da jangada, e sentou-se ela na parte de trás. De seguida, o ornitorrinco entrou no rio e começou a empurrar a jangada, nadando até à outra margem.
A certa altura, porém, foram apanhados por uma forte corrente de água. Nené lançou um grito aflitivo, e o ornitorrinco só teve tempo de se agarrar o melhor que pôde à jangada, para que esta não partisse sem ele, e a sua amiga ficasse completamente sozinha e desesperada, no meio das águas.
A toda a velocidade, lá iam eles agora, levados pela corrente, cheios de medo, sem mesmo terem tempo para pensar…
Não se sabe quanto tempo durou a viagem forçada. Só que, a certa altura, a jangada colidiu com um gigantesco tronco de árvore que tinha tombado sobre o rio, e eles foram arremessados para cima dele. Com o susto, agarraram-se um ao outro, sem trocar palavras.
Nené estava toda molhada e começou a tiritar de frio.
– Será melhor irmos com cuidado, por cima do tronco, até àquela margem – sugeriu o ornitorrinco, apontando para terra firme.
Nené não disse nada. Limitou-se a segui-lo.
Chegaram a uma floresta de eucaliptos, mas que território seria: se o dos cangurus ou o dos coalas, nenhum dos dois era capaz de dizer. Estavam demasiado confusos, depois da aventura por que tinham passado. E Nené estava exausta. Só muito devagar conseguiu subir a um eucalipto para se alimentar e descansar. O ornitorrinco ficou junto da árvore e começou a procurar insetos…
Decorreram várias horas. O Sol nasceu. Era dia, agora. O pelo de Nené tinha secado completamente, e ela já não sentia frio, nem fome. Resolveu descer da árvore de eucalipto.
– Como te sentes? – perguntou ela ao ornitorrinco.
– Sinto-me bem, mas a esta hora costumo dormir. Ainda estou com sono, apesar de ter dormido durante a noite…
– Entendo o que queres dizer. Também tenho por hábito dormir de dia e estar ativa de noite. Mas, depois do susto de ontem, fiquei com o sono trocado!
– Eu também, mas o melhor será tentarmos descobrir onde estamos – propôs o ornitorrinco.
Assim fizeram. Caminharam pela floresta até encontrarem a toca de um numbat. Tinha lá dentro duas crias esperando a mãe, que tinha saído à procura de alimento. Os dois amigos concluíram que a senhora Numbat não devia estar longe dali e resolveram procurá-la.
Foram encontrá-la a alimentar-se de formigas, numa árvore. Cumprimentaram-na em conjunto:
– Bom dia!
A senhora Numbat retribuiu amavelmente a saudação, mas ficou muito admirada com a presença de um coala e de um ornitorrinco no seu território.
– Andam perdidos?! – perguntou-lhes.
– Mais ou menos… – respondeu o ornitorrinco. – Fomos trazidos até aqui por uma corrente de água e não sabemos onde estamos. Tem a amabilidade de nos esclarecer?
– Estão na Floresta dos Eucaliptos, que é habitada pelos numbats, e este é o meu território.
– Interessante! – comentou Nené, admirada. – Então os numbats também estão zangados com os cangurus…
– De forma nenhuma! Por que razão é que devíamos estar zangados com os cangurus?!!
– Não estão?! Então porque vivem isolados?
– Porque nós, os numbats, somos animais solitários e não gostamos de partilhar o nosso território, nem mesmo com os outros membros da nossa espécie…
– Nesse caso, espero que nos desculpe por termos vindo perturbar a sua solidão. Não foi essa a nossa intenção. Nós só procurávamos uma solução para a briga entre coalas e cangurus – argumentou o ornitorrinco.
– Não se preocupe! Nós somos solitários, mas não somos insociáveis – elucidou a senhora Numbat.
– Sabe se podemos chegar, por terra, daqui até ao território dos cangurus? – perguntou-lhe Nené.
– É provável… Mas não lhes posso garantir – respondeu a senhora Numbat. – Eu nasci e cresci num território perto da Planície das Árvores Mortas – explicou. – Era nesse território que a minha mãe habitava. Lá, descobri, certa vez, uma entrada para uma passagem subterrânea que tinha sido construída por um vombate. Era um túnel muito comprido. E a minha mãe contou-me que tinha ouvido dizer que ele ia dar ao território dos cangurus. Contudo, não havia provas de isso ser mesmo verdade…
– Precisamos de encontrar esse túnel. Seria capaz de nos guiar até lá? – perguntou o ornitorrinco.
– Não, lamento. Ainda não posso deixar os meus filhotes sozinhos. Mas é muito fácil de encontrar: só têm de caminhar em direção ao norte. É o último território antes da Planície das Árvores Mortas. E a entrada para o túnel fica mesmo na fronteira entre a Floresta dos Eucaliptos e a Planície. Não tem nada que enganar…
Nené e o ornitorrinco despediram-se da senhora Numbat, agradecendo amavelmente a ajuda que esta lhes dera, e partiram em direção à Planície das Árvores Mortas. A viagem demorou muitas noites… Durante o dia iam dormindo ou comendo, e de noite caminhavam lentamente. Já não tinham o sono trocado, mas estavam exaustos, porque nenhum dos dois estava habituado a andar tanto.
Por último, avistaram a Planície. Estava seca e repleta de árvores sem vida. Era assustadora!
– Onde estará a entrada do tal túnel? – perguntou Nené.
– Não sei. Devia estar por aqui – respondeu o ornitorrinco, ao mesmo tempo que olhava com atenção em seu redor.
Nisto, Nené dá um grito desesperado, e o ornitorrinco vê-la desaparecer repentinamente, engolida pelo solo, sem poder socorrê-la. Tinha caído no túnel.
– Magoaste-te? – inquiriu o ornitorrinco.
– Que pergunta mais descabida! – respondeu Nené, maldisposta. – Então como é que não havia de me ter magoado?!… Não vês a profundidade do fosso em que caí?!
– Tens razão! Lamento… posso ajudar-te?
– Podes. Desce e vem cá ver isto!
O ornitorrinco desceu com cuidado, agarrando-se às paredes de terra. Chegou perto de Nené, e que viu? O túnel era um autêntico armazém de ervas e raízes secas.
– O que é que isto significa?! – perguntou, estupefacto.
– Como queres que eu saiba?! Para mim, isto não faz sentido algum!
– Todos estes alimentos foram certamente colhidos pelo vombate que construiu este túnel – concluiu o ornitorrinco. – Outra explicação não encontro para o caso.
– E essa parece-te uma explicação válida?! – retorquiu Nené. – Porque haveria o vombate de colher tantos alimentos, e deixá-los secar, sem os consumir?…
– Tens razão… – respondeu o ornitorrinco, pensativo.
Mas se não tinha sido o vombate, então quem tinha sido?…
Era isso o que os dois amigos estavam agora dispostos a descobrir…
Passando pelos estreitos espaços que restavam entre as paredes do túnel e os alimentos amontoados, caminharam longo tempo na escuridão do subsolo até que um raio de luz surgiu a indicar-lhes uma saída para o exterior. Subiram à superfície terrestre. Estavam no deserto. Só areia e vento seco os rodeava. Cangurus? Nem um único!…
– E agora? – perguntou Nené.
– Que território é este? – perguntou simultaneamente o ornitorrinco.
Nada! À sua volta não havia nada, e eles não sabiam nada… Que fazer? Como não sabiam, continuaram a andar em frente.
Avistaram uma muralha de pedra que rodeava um castelo enorme, de torres muito altas. Aproximaram-se da muralha e foram andando ao longo dela até descobrirem um portão de ferro. Era muito velho e estava todo enferrujado. Empurraram-no, usando muita força. O portão foi abrindo lentamente, provocando um forte rangido. Espreitaram para dentro. À volta do castelo havia um jardim fantasmagórico. As árvores estavam reduzidas a troncos secos com rachas. As plantas e as flores tinham murchado, mas conservavam-se rígidas como se estivessem congeladas, e tinham perdido a sua cor natural. Agora, apresentavam todas diferentes tonalidades de cinzento..
Dirigiram-se ao castelo. Na porta, havia um grande letreiro onde estava escrito: “Esta é a Fortaleza da Feiticeira da Destruição. Quem aqui ousar entrar será destruído”.
Os dois amigos leram o letreiro e ficaram todos arrepiados de medo. Seria isso possível? Existiria mesmo uma feiticeira que fosse capaz de os destruir?
– Acreditas no que está aqui escrito? – perguntou o ornitorrinco.
– Não sei. Mas sinto um medo!… Até as patas me tremem… – sussurrou a Nené.
– Acalma-te! Vais ver que não passam de ameaças vãs…
– Serão?!…
– Claro! Se essa feiticeira fosse capaz de nos destruir, não escrevia isso num letreiro, já o tinha feito. Afinal de contas, nós já estamos há algum tempo no seu jardim.
Nené acreditou nas palavras corajosas do ornitorrinco e decidiu perder o medo.
Entretanto, ouviu-se um ruído de correntes de ferro que se arrastavam pelo chão do castelo. O ornitorrinco atreveu-se a entrar um pouco, para espreitar. Viu um vombate. Era ele que andava acorrentado.
– Vem, entra… – sugeriu o ornitorrinco.
Nené entrou, e foram os dois ao encontro do vombate.
– Olá! – disseram-lhe, cumprimentando-o. Mas este não lhes respondeu. Parecia que estava a dormir de olhos abertos.
– Que estranho! – comentou Nené. – Será que está enfeitiçado?
– Enfeitiçado?! Não, é sonâmbulo!… Temos de o ajudar, ele tem de voltar para a cama – decidiu o ornitorrinco, e começou a puxar pelas correntes de ferro que o vombate trazia presas às patas, enquanto Nené procurava um quarto de dormir entre os muitos aposentos do castelo. Acabou por descobrir um. Tinha uma cama larga, feita de madeira escura, e muito alta. Não foi nada fácil convencer o vombate a deitar-se nela. Mas, por fim, conseguiram. E como ficaram muito cansados, deitaram-se ao lado dele. Adormeceram os três juntos.
Nené sonhava agora que estava pendurada num dos ramos da sua árvore preferida. Era dia, o Sol brilhava, e ela trincava uma folhinha de eucalipto, muito devagarinho…
Uma fada vem ter com ela. Era muito bonita: tinha os cabelos dourados e um vestido de seda turquesa. Na mão, uma varinha de condão luminosa. Nené pergunta-lhe, encantada:
– Quem és tu?
A fada responde-lhe:
– Eu sou a Fada dos Sonhos da Vida.
– E porque vieste ter comigo? – pergunta-lhe Nené, curiosa.
A fada aproxima-se dela, e murmura-lhe ao ouvido:
– Vim revelar-te um segredo: “Só é verdadeiramente feliz quem tem mais sonhos do que a realidade é capaz de destruir”.
Nené acorda e ainda está a repetir em voz baixa: “… mais sonhos do que a realidade é capaz de destruir”.
Já não havia cama, nem quarto, nem castelo, nem jardim fantasmagórico, nem muralhas, nem deserto e, principalmente, já não havia o medo da Feiticeira da Destruição…
Nené estava realmente pendurada no ramo de um eucalipto. Mas este eucalipto não era a sua árvore preferida, que ficava junto ao rio, no território dos coalas. Era um daqueles eucaliptos que ela tanto desejara e que ficava do lado de lá, no território dos cangurus. Só que agora o território dos cangurus também era dos coalas, e o território dos coalas também era dos cangurus… Porque a Fada dos Sonhos da Vida, que admirara a coragem de Nené e do ornitorrinco, tinha construído uma ponte sobre o rio que separava os dois territórios, e apagara da memória dos animais a briga que os tinha separado.
E foi assim que os coalas e os cangurus ficaram a viver juntos e felizes naquele que passou a chamar-se País dos Dorminhocos, Comilões e Saltadores…
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