A HEROICIDADE DO NÚMERO 0,1


No País sem Nome


Tendo sido obrigado a abandonar o País dos Valores, o número 0,1 viajou por diferentes lugares do Planeta dos Números, à procura de um país onde pudesse viver feliz. E foi assim que, um certo dia, descobriu um território que lhe despertou grande curiosidade…

Era uma região encantada, como se tivesse saído de um conto de fadas. O seu céu parecia um arco-íris formado por todas as cores que existem. E na sua terra, as flores, as plantas, as árvores e os rios formavam um conjunto alegre e garrido de cores brilhantes e fortes.

Mas, apesar de todo o ambiente ser tão divertido, o número 0,1 começou a sentir-se inseguro e, aos poucos, foi crescendo dentro de si um certo medo. Na realidade, desde que entrara naquele lugar estranho, ainda não tinha encontrado qualquer algarismo ou número. Era como se visitasse um País fantasma, onde todos os habitantes tivessem desaparecido, por qualquer razão…

Assustado, resolveu voltar para trás. Porém, todo o esforço que fez para encontrar o caminho, que o tinha conduzido àquele País misterioso, foi em vão. Tinha perdido por completo a orientação, ao contemplar as cores mágicas que o rodeavam.

Não sabendo mais o que fazer, sentou-se junto de uma árvore para pensar.


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– O que te preocupa? – perguntou-lhe a árvore.

O número 0,1 ficou surpreendido ao ouvir a voz de um algarismo. Olhou ao seu redor e, como não via ninguém, pensou que tinha sonhado de olhos abertos.

– O que te preocupa? – repetiu a árvore.

Seria possível? Aquela voz, como a de um algarismo, saía de uma árvore!…

– És tu quem fala comigo?… – perguntou, por fim, hesitante.

– Sou – respondeu a árvore.

– Uma árvore!… E a tua voz é igual à minha! Como é isso possível?

– Eu tenho a forma exterior de uma árvore mas, na realidade, eu sou um algarismo. Sou um 4.

– Um 4! Quem diria?!  Por que razão te transformaste numa árvore?…

– Eu não me transformei, fui transformada.

E a árvore começou a contar…


“Foi há já muito tempo que tudo aconteceu. Este País, que hoje não tem nome, chamava-se então o País da Abundância. Tudo o que nele crescia, se reproduzia e multiplicava, sem que algum dos seus habitantes precisasse de trabalhar para isso. Era um País tão fértil que todos os alimentos sobejavam e nenhum algarismo precisava de passar fome. Toda a população vivia satisfeita e feliz. Até que uma certa noite, quando todos já estavam recolhidos nos seus lares, ouviu-se um poderoso estrondo; e um raio de luz fortíssima vindo do céu, iluminou de uma só vez todo o País da Abundância.

Correram então todos para as ruas, cheios de curiosidade, com o fim de descobrirem o que era aquilo que acabava de acontecer.

Lá ao longe, a montanha mais alta do País encontrava-se completamente coberta por um  imenso clarão de luz.

E como a curiosidade fosse cada vez maior, todos os algarismos resolveram viajar até lá, para ver de perto o que se estava a passar. Partiram então em grandes grupos, uns atrás dos outros…

Lá no alto da montanha, uma surpresa enorme os esperava. Uma estrela de dimensões gigantescas poisara no seu cume. Sentado sobre ela, um ser de proporções enormes e aspecto extraordinário, apresentava-se com ar majestoso.

Todos os algarismos ficaram completamente paralisados a observá-lo…

O seu rosto era feio e desproporcionado nas suas formas excessivamente carnudas. E as suas mãos tinham dedos demasiado compridos que terminavam numas unhas afiadas e encurvadas, de aspecto muito agressivo. Mas as vestes que revestiam o seu corpo, e os sapatos que trazia calçados, encantaram e fascinaram todos os algarismos… Nunca antes, habitante algum do País da Abundância tinha visto coisa assim…

– Estais admirados, não é verdade? – perguntou o ser estranho, com voz forte e poderosa. – Porque nunca tínheis visto a riqueza!

– Vede! A minha capa foi toda tecida em ouro. Os meus sapatos foram feitos de diamantes raros. As minhas calças e blusa, das sedas mais finas que existem!…

Os algarismos pasmavam de espanto, perante o que viam e ouviam. Mas nenhum se atrevia a responder.

– Então, qual de vós também gostaria de possuir tanta riqueza? – perguntou o ser estranho.

Todos os algarismos se olharam entre si, com ar interrogativo e duvidoso. No entanto, nos seus pensamentos, começou a crescer a ideia de poderem, eles também, possuir coisas tão valiosas. Até que um, foi o primeiro a responder:


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– Eu! Eu quero!!!

Depois deste “Eu!”, muitos outros se ouviram. Uns a seguir aos outros, até que nem  um único algarismo restou que não tivesse dito também: “- Eu quero!”.

– Muito bem! – respondeu o ser estranho. – Só eu tenho poder para vos dar a riqueza que vós desejais. Por isso, vós tereis de vos sujeitar às minhas condições. Doutra forma, continuareis a ser pobres e sem importância como até aqui!

Os algarismos escutaram estas palavras sem as levar demasiado a sério. A ideia de poderem vir a ser ricos e importantes já se tinha apoderado totalmente deles. Por isso, mostraram-se de acordo e prontos a sujeitarem-se a qualquer condição que lhes fosse imposta.

– Muito bem! – afirmou de novo o ser estranho. – Nesse caso, cada um de vós  dir-me-á o que deseja possuir, e eu dar-lhe-ei tudo o que quiser! Mas, em troca do que receber, terá de me oferecer o seu Valor…

Assim aconteceu. Cada algarismo recebeu o que ambicionava, dando ao ser estranho, em troca, o seu Valor.

Primeiramente, ficaram os algarismos muito entusiasmados com tudo o que tinham recebido. Mas mais tarde, quando se observaram uns aos outros, para verem que riquezas cada um tinha adquirido, foi com grande choque e desilusão, que verificaram que já não eram algarismos. Pois era o seu Valor que lhes dava a sua Forma. E agora, sem Valor e sem Forma, estavam todos reduzidos a linhas, uniformes, sem qualquer significado…



Revoltados, os algarismos dirigiram-se ao ser estranhado, tentando exigir que ele lhes restituísse os seus respectivos Valores. Mas, uma gargalhada os recebeu:

– Ah! ah! ah!… Isso já não é possível! Agora sou eu o dono do vosso Valor.

A fúria dos algarismos foi aumentando. Alguns tentaram até lutar contra o ser estranho, atirando-lhe com pedras e tudo o mais que tinham à mão. De nada lhes adiantou.

– Aqui tens tudo o que de ti recebemos! – disseram em conjunto os algarismos, quando finalmente compreenderam que não podiam vencer o ser estranho; ao mesmo tempo que de livre vontade restituíam tudo o que lhes tinha sido oferecido.

– Pois bem, se vós não quereis ficar com o que me pedistes, não precisais. Mas a Forma de algarismos não vos volto a dar. Pois ela agora me pertence. No entanto, dar-vos-ei uma outra, aquela que mais condisser com o interior de cada um de vós. E com ela permanecereis, até ao dia em que algum algarismo ou número, for capaz de descobrir o meu segredo!…”


– Ora aqui tens – diz, por fim, a árvore ao número 0,1. – É esta a nossa triste história.

– Mas… e depois, que aconteceu? – pergunta curioso, e muito admirado, o número.

– Depois… todos se transformaram em qualquer coisa ou ser. Já não nos foi mais possível comunicar uns com os outros. Nem nos distinguimos de tudo o resto que nos rodeia. Hoje, sou uma árvore e já não consigo sentir como um algarismo. Quanto aos outros… quem sabe onde eles estarão?!…

– E o ser estranho? – pergunta o número interessado. – Quem é ele afinal de contas? Onde vive? Qual é o seu segredo?

– Isso, ninguém sabe. Eu penso que seria um feiticeiro. Mas onde ele vive não posso saber, nem tentar descobrir. As minhas raízes estão presas à terra e só com o pensamento me é permitido viajar…

– Então eu vou ajudar-vos! – afirma, decidido, o número 0,1. – Eu vou  descobrir esse feiticeiro e desvendar o seu segredo. Precise para isso o tempo que precisar.

A árvore ficou feliz. Feliz por ter encontrado um amigo. E resolveu ajudá-lo na tarefa a que ele tinha acabado de se propor.

– Eu desejo-te boa sorte na procura – disse-lhe então. – O meu  pensamento sempre te acompanhará. Quando não souberes que caminho hás de seguir, pensa em mim, e ouvirás a minha vós dentro de ti, a aconselhar-te.

Despediram-se os dois amigos, e o número 0,1 partiu, à procura do feiticeiro.


O Interior do Planeta dos Números


“Mas  por onde hei de eu começar?”, pensava para si, o número 0,1. “Talvez na montanha…”.

Sim. Lá no cimo, onde tudo acontecera, deveria também estar a resposta que ele procurava…

Caminhou então até lá, em passo apressado, orientado pela voz da árvore que já vivia no seu coração.

Quando atingiu o cume da montanha, foi com grandes olhos que verificou que, no mesmo sítio onde o feiticeiro poisara com a sua estrela, se encontrava um buraco enorme de uma profundidade infinita.

Ficou a observá-lo, sem saber ao certo o que fazer. Depois, teve uma ideia: “Talvez o feiticeiro viva lá no fundo!”. E, corajoso como era, resolveu investigar. Aos poucos, e sempre cautelosamente agarrado às paredes de terra seca e dura, foi descendo pelo buraco.  Mas este parecia não mais acabar. Além disso, estava a tornar-se cada vez mais estreito e escuro. O número começou a sentir medo. No entanto, também já não tinha força suficiente para voltar à superfície da terra. Por isso, continuou deslizando, quase sem fazer esforço algum para se agarrar às paredes do buraco. Repentinamente, caiu numa forte torrente de água que a toda a velocidade o levou, arrastando-o, mais e mais, para o interior do Planeta dos Números.


Atordoado, quase sem sentidos, foi mais tarde atirado contra uma rocha, à qual ficou agarrado durante algum tempo, sem entender o que estava a acontecer com ele.

Quando de novo recuperou as forças e a consciência, olhou em redor de si, e nem queria acreditar no que via. A toda a sua volta, cavernas gigantescas estavam transformadas em oficinas. E, nelas, uma quantidade inacreditável de algarismos trabalhava incessantemente.

O número 0,1 pensou que talvez eles pudessem ajudá-lo a encontrar o feiticeiro, ao mesmo tempo que se alegrou por verificar que já não estava só.


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Dirigiu-se a uma das cavernas, no interior da qual uma grande quantidade de diamantes estavam armazenados a um canto. E uns algarismos, transportando alguns deles em pequenos carros manuais, entregavam-nos a outros, que os trabalhavam com instrumentos variados, transformando-os em diferentes objectos de grande valor e rara beleza.

Aproximando-se de um algarismo trabalhador, o número 0,1 tentou entrar em contacto com ele, dizendo-lhe quem era e o que pretendia. Mas o algarismo não lhe respondeu e, continuando o seu trabalho, parecia não se ter apercebido de coisa alguma.

“Mas que estranho!”, pensou o número. “Parece que está a dormir, mesmo estando a trabalhar. Por que razão será que não me ouve, nem vê?!”

O mistério era cada vez maior. No entanto, o número não desistiu, e dirigindo-se à próxima caverna tentou de novo a sua sorte. Mas… nada! Todos os algarismos reagiam de igual forma…

Nesta segunda caverna eram trabalhados objectos de ouro que, depois de prontos, eram depositados em vagões que se deslocavam sobre carris de ferro.

O número 0,1 resolveu entrar num deles. Pois tinha curiosidade em descobrir para onde seriam conduzidos.

E a viagem começou…

Sem terem algum condutor, os vagões começaram a deslocar-se automaticamente sobre os carris. Primeiro, lentamente, ao longo das cavernas. Depois, cada vez  mais rápido, passando por túneis e em terrenos montanhosos. O número começou a sentir-se estonteado. À sua volta tudo girava. E de repente, foi atirado para o ar. E com grande surpresa e um certo receio, sentiu-se fortemente atraído por um remoinho de ar e vento, formado por  cores muito luminosas e variadas. E deixou-se ir… puxado por essa energia misteriosa que parecia levá-lo para um mundo de sonho e fantasia…

Tempos depois foi acordar num lugar feito de nuvens, todo pintado de cores suaves e luzidias .


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Lá, viviam muitos algarismos. Mas nenhum deles trabalhava. Antes pelo contrário, pareciam estar em festa permanente. Pois dançavam, enquanto cantavam e faziam música.

Por todo o lado, havia montes de sedas finas das mais variadas cores. E os algarismos cobriam-se com elas, enquanto dançavam.

O ar que se respirava era leve e perfumado. O número 0,1 sentia-se feliz, como o pareciam ser todos os algarismos que ali se encontravam. Mesmo assim, tal como os algarismos das cavernas, estes também não foram capazes de reparar na presença do número, ou de ouvir as suas perguntas.

O número 0,1 sentiu-se de novo só. Que mundo seria aquele?

Perto dali, avistou uma imensa bola de sabão e aproximou-se dela. Ela encantou-o. Era difícil resistir-lhe, teve de lhe tocar. As suas paredes eram quentes, suaves e fofas. E lentamente começaram a atraí-lo, como se fossem um íman, absorvendo-o. E ele lá estava, agora, dentro de uma enorme bola de sabão, toda feita de cores mágicas. E encontrou a paz. De tal forma que até quase esqueceu, por completo, a sua missão.

Aos poucos foi sentindo como a bola começou a deslocar-se no ar. Para onde o levaria?


O Mistério da Estrela


Entretanto, passou-se muito tempo desde que o número 0,1 entrou na bola de sabão. Mas, para ele, era como se o tempo tivesse acabado. Pois a felicidade não tem tempo nem espaço. E lá, naquela bola de sabão, o número sentia-se feliz. Até ao momento em que algo de inesperado aconteceu…

A bola de sabão deixou de se movimentar. E o número pôde sentir como ela poisou num lugar muito quente e luminoso. Onde estariam?

A bola de sabão foi-se desfazendo e aos poucos evaporando no ar.

O número 0,1 acordou do seu sonho. À sua volta só havia fogo, e raios luminosos caíam por todo o lado, provocando um barulho insuportável.


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Com o despertar, o número recuperou de novo a consciência. Lembrou-se então do que o tinha levado ali: a promessa de encontrar o feiticeiro e de descobrir o seu segredo. E aos poucos, começou a ouvir a voz da sua amiga árvore que no seu coração lhe dizia: “Nada temas, porque eu estou contigo. O que tu vês é só aparência. Na verdade, nada do que te rodeia te pode fazer mal algum!”

E o número 0,1 acalmou-se. Pois a confiança que tinha na árvore era ilimitada, e maior do que o medo que o impedia de agir. Assim, foi andando. E passando através do fogo e dos raios luminosos, ele entendeu que se encontrava na estrela do feiticeiro.

“Aqui, deve estar a chave do seu segredo!”, pensou ele. E procurou. Procurou por todo o lado, na esperança de encontrar algo que lhe chamasse a atenção. Procurou até ficar cansado…

“Árvore amiga, cheguei ao fim das minhas forças!”, exclamou em pensamento. “Como devo continuar a procura?”

“Não te iludas com o que vês!”, respondeu-lhe a árvore. “No interior, no interior do que te rodeia, terás a resposta que tu procuras!”

“No interior?!”, pensou o número 0,1. “Mas como posso eu chegar ao interior do fogo, se é tão quente, e eu tenho medo de me queimar?”

Mas as palavras da árvore repetiam-se dentro dele:” Não te iludas com o que vês. No interior do que te rodeia terás a resposta que tu procuras.”

E fez-se luz nos seus pensamentos: “E se o fogo e os raios luminosos não fossem mais do que um truque do feiticeiro, para o assustar? Talvez eles nem existissem realmente…”. Então decidiu-se a tocá-los, sem medo, para ver o que aconteceria.


Nesse mesmo momento, tudo o que o rodeava desapareceu. Como que por magia, o número 0,1 apareceu de novo no cimo da montanha mais alta do País sem Nome, que entretanto voltara a ser o País da Abundância

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Pois o número 0,1 tinha acabado de desvendar o segredo do feiticeiro: o seu poder não passava de uma mentira. Mentira essa que dominara a vida dos algarismos daquele País, porque eles acreditaram mais nela do que em si próprios.


E o dia em que tudo isto aconteceu foi um Sábado…

Por isso, ainda hoje, no País da Abundância do Planeta dos Números, o Sábado é dia de festa. Nesse dia, todos os algarismos e números se reúnem no cimo da montanha mais alta do País para celebrarem a sua libertação. E o 0,1 festeja juntamente com eles. Hoje, é um número feliz, porque conhece o seu verdadeiro valor. Pois qualquer número, por mais pequeno que seja, tem sempre um grande valor: é o valor de ser quem ele é!


D. Momo King

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